Cristiane Segatto entrevista o médico Enis Donizetti Silva, presidente da Sociedade de Anestesiologia do Estado de SP (Saesp) e coordenador dos anestesistas do Hospital Sírio-Libanês. Ele conta o que os profissionais e instituições de saúde não costumam assumir.

Há duas semanas, o vice-presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, fez uma declaração assustadora durante um evento sobre segurança do paciente na Califórnia. “O sistema de saúde americano mata mais gente de eventos adversos a cada ano do que o câncer de mama, o de próstata e o de pulmão”, afirmou. Eventos adversos são descuidos, muitas vezes fatais, ocorridos em clínicas e hospitais. É aquilo que antigamente era chamado de “erro médico”.

O conceito foi ampliado para englobar todo tipo de dano à saúde ocorrido em instituições pagas para cuidar dela. Os erros de diagnóstico ou de medicação, o uso de material inadequado, a falta de segurança em cirurgias e outros procedimentos são alguns dos problemas que provocam 400 mil óbitos por ano nos Estados Unidos.

O Brasil, além de não dispor de bons registros de eventos adversos, convive com o silêncio que favorece a omissão. Falar abertamente sobre erros ocorridos em hospitais (leia a reportagem) é um tabu entre os profissionais de saúde. Uma das vozes dissonantes é a do médico Enis Donizetti Silva, presidente da Sociedade de Anestesiologia do Estado de São Paulo (Saesp). Há 15 anos, Silva coordena os anestesistas do Hospital Sírio-Libanês. Em 2009, coube a ele o desafio de manter o vice-presidente José Alencar (1931-2011) anestesiado durante 22 horas em uma das mais complexas cirurgias às quais ele foi submetido durante a longa batalha contra o câncer.

À frente da Saesp, Silva está empenhado em fazer um mapeamento dos eventos adversos ocorridos nos hospitais públicos e privados paulistas e de outros Estados. Para isso, convidou os 3,6 mil associados da entidade e anestesistas de outras regiões do país a registrar os casos anonimamente num banco de dados. Silva também prepara o lançamento, previsto para agosto, da Fundação de Segurança para o Paciente. Nesta entrevista, ele conta o que os profissionais e instituições de saúde não costumam assumir.

ÉPOCA - Os hospitais privados são mais seguros que os públicos?

Enis Donizetti Silva - Não tenho nenhuma dúvida de que a segurança do paciente está em risco tanto nos hospitais públicos quanto nos privados. Não sei onde está pior. Enquanto as pessoas não reconhecerem a existência desse problema, vamos continuar no jogo de cena de sempre. Precisamos criar uma consciência coletiva. Não podemos fingir que está tudo bem e ficar esperando que novas tragédias aconteçam. As sociedades de especialidades médicas se esconderam durante anos e anos. É hora de mudar.

ÉPOCA - O paciente não dispõe de nenhum recurso para saber se um hospital é mais ou menos preocupado em garantir a segurança dos procedimentos. Qual é a realidade que os anestesistas conhecem?

Silva - Muitos deles não dispõem dos instrumentos necessários para cuidar do doente com segurança. O Conselho Federal de Medicina e a Sociedade Brasileira de Anestesiologia estabeleceram critérios mínimos de monitorização que deveriam ser seguidos em todo o país. Se você deitar numa mesa de clínica ou hospital para ser anestesiada (mesmo que seja uma sedação leve), a sala precisa ter um cardioscópio (aparelho que permite a observação eletrocardiográfica contínua durante uma operação), um oxímetro de pulso e um aparelho de pressão. Se for anestesia geral, é necessário também um aparelho chamado de capnógrafo. Ele fornece informações sobre os padrões de respiração e a eliminação de gás carbônico.

ÉPOCA - Os hospitais não seguem essa norma?

Silva - Fizemos uma enquete informal com membros da diretoria e da comissão científica da Saesp. Por alto, detectamos que mais de 30% dos hospitais onde eles trabalham ou que eles conhecem não têm requisitos mínimos de segurança. Isso ocorre tanto em hospitais públicos quanto nos privados. É um absurdo. Estou falando de um estado onde a medicina é desenvolvida e de um grupo mais próximo da elite. Imagine o que vamos encontrar se pudermos pesquisar o que acontece em hospitais pequenos e em clínicas.

ÉPOCA - Como o paciente pode se proteger?

Silva - As pessoas precisam se informar. Os pacientes são muito passivos. Eles precisam saber que têm direito a uma consulta pré-anestésica. Não é consulta feita no corredor, quando o paciente já está na maca a caminho da sala de cirurgia. O anestesista encontra o paciente na maca e pergunta se ele está de jejum ou se tem alguma alergia. Isso não basta. Em vários hospitais em São Paulo, mesmo no circuito da Avenida Paulista, o paciente entra no centro cirúrgico sem ter sido visto pelo profissional responsável pela anestesia.

ÉPOCA - Não basta o paciente preencher aquele questionário antes da cirurgia?

Silva - De jeito nenhum. Isso aconteceu com a minha mulher na Avenida Paulista. Não foi no interior do Piauí. Mandaram o formulário de consentimento informado para ela assinar no quarto. Perguntei pelo anestesista e deram aquela enrolada. Informei que ela era mulher do presidente da Sociedade de Anestesiologia do Estado de São Paulo e disse: “Pede para o anestesista dar uma olhadinha nela aqui no quarto antes da cirurgia, por favor?”.

ÉPOCA - Isso é imprudência, imperícia ou negligência?

Silva - Para mim, é negligência. Não tenho dúvida. O paciente precisa conhecer todos os riscos que ele pode enfrentar ao entrar num hospital. O meu papel como presidente da sociedade é decodificar a linguagem médica e fazer com que ela chegue ao maior número possível de pessoas. A saúde suplementar tem a obrigação de suprir informação. O governo tem o dever de fazer isso. O Ministério da Saúde não pode pegar 7% dos milhões que ele gasta por ano com comunicação e falar sobre segurança do paciente? Não pode colocar um alerta claro nos maços de cigarro do tipo: “Cuidado, podem operar a sua perna errada”. Todo mundo já sabe que cigarro dá câncer. Por que não usar os maços para colocar outras informações de saúde? Há mil formas de fazer isso. Falta disposição para assumir o problema. Se o registro dos danos causados ao paciente não é exigido, não temos a informação. Se não temos a informação, parece que o problema não existe. Fica tudo camuflado.

ÉPOCA - O governo americano publicou os indicadores de segurança e de desempenho de milhares de instituições. A população entra num site e escolhe o melhor hospital a partir de critérios objetivos. Qual é a chance de termos uma medida semelhante no Brasil?

Silva - Se a sociedade civil trabalhar para isso, ela consegue. O legislador pode até criar uma obrigação, mas ninguém vai cumprir. O consumidor que percebe que o hospital vende gato por lebre pode exigir a mudança. A pessoa entra num hospital privado achando que vai ser bem tratado e operam a perna errada. Ou dão Novalgina apesar dele ter avisado que era alérgico. Se o consumidor ficar consciente de que entrar num hospital é hoje algo muito inseguro, ele vai exigir garantias antes do procedimento. Vai perguntar ao anestesista: “O sr. vai mesmo ficar ao meu lado o tempo todo ou vai ficar em três salas de cirurgia ao mesmo tempo?”.

ÉPOCA - O sr. acredita que os hospitais podem reagir de forma positiva à pressão dos clientes?

Silva - Se o consumidor tiver consciência desses direitos e passar a exigir o cumprimento deles, o mercado responde. O mercado é capitalista. Antigamente, só havia carro ruim no Brasil. Quem aceita hoje pagar caro por um modelo sem cinto de segurança, airbag e tantos outros equipamentos? O consumidor ficou mais exigente. O mercado tomou consciência de que o cliente não aceitaria mais qualquer coisa. Na saúde, o nível de exigência do consumidor brasileiro ainda é muito baixo. Esse é o problema.

ÉPOCA - Em outros países, a discussão sobre os danos provocados pelos tratamentos de saúde é muito mais clara e direta?

Silva - Sem dúvida. Enquanto não temos sequer o registro dos eventos adversos (antigamente chamados de “erros médicos”), os americanos discutem isso há muito tempo e de forma transparente. Em janeiro, estive num evento sobre segurança do paciente em Irvine, na Califórnia. O vice-presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, estava lá e fez um discurso muito claro. Disse que o sistema de saúde americano mata mais gente de eventos adversos a cada ano do que o câncer de mama, o de próstata e o de pulmão. No final da década de 80, os eventos adversos eram a sétima causa de morte no país. Hoje é a terceira. São cerca de 400 mil óbitos por ano.

ÉPOCA - No Brasil, quando a família aponta um erro é comum o médico alegar que foi uma intercorrência. O que isso significa?

Silva - Antigamente, quando o paciente morria, os médicos diziam que ele não havia resistido à anestesia. Durante anos, essa era a desculpa clássica. Depois, passaram a dizer que o doente teve uma reação alérgica. Agora dizem que houve uma intercorrência. São eufemismos que a classe médica e os hospitais usam para dizer que um erro foi uma fatalidade. O cliente ouve essa desculpa e pensa: “Coitadinha da mamãe, ia mesmo acontecer isso com ela”.

ÉPOCA - Qual é a principal causa desses erros?

Silva - Quando fazemos uma análise de um evento adverso qualquer, encontramos o mesmo fato: de 60 a 70% deles ocorrem por falhas humanas. Ponto final. O índice é semelhante na indústria nuclear e na aviação. Só que na aviação, ocorre um acidente grave a cada 100 milhões de decolagens. Na saúde, temos muito mais que uma parada cardíaca provocada por um erro a cada 100 milhões de pacientes. O vice-presidente americano disse que as mortes por eventos adversos equivalem à queda de 33 a 37 Boeings por dia. Se a aviação convivesse com a quantidade de mortes provocadas por erros que temos na saúde, o sistema entraria em colapso. Nenhum avião seria autorizado a levantar voo. Enquanto isso, as cirurgias inseguras continuam acontecendo. Se nos Estados Unidos, a tragédia é desse tamanho, podemos imaginar que no Brasil o problema é bem mais grave. Calculamos que aqui ocorra uma parada cardíaca a cada 3 mil cirurgias. No Brasil, temos o dado de uma pesquisa realizada nos hospitais-escola. A média é de uma parada cardíaca ocorrida a cada 4 mil cirurgias. Em instituições que não são referência de ensino, o índice deve ser muito pior.

ÉPOCA - Por falar em ensino, como as falhas de formação médica comprometem a segurança dos pacientes durante a cirurgia?

Silva - A formação deficiente dos médicos e a falta de atualização são dois dos maiores problemas. Terminei a residência em anestesia em 1989. Se de lá para cá eu não tivesse feito nenhum curso, nenhuma atualização, ninguém iria me impedir de trabalhar. Nem os hospitais nem as entidades de classe como o Conselho Federal de Medicina me obrigam a prestar contas sobre os cursos que fiz durante todos esses anos. A quantidade de conhecimento produzida na área médica dobra a cada cinco anos. Muitas das coisas que aprendemos na faculdade e na residência vão cair no vazio. Deixam de ter sustentação científica. Se o médico passa 20 anos sem se atualizar, como ele pode continuar habilitado a trabalhar? Quem sofre é o paciente.

ÉPOCA - O Conselho Regional de Medicina de São Paulo divulgou na semana passada o resultado da prova aplicada aos médicos recém-formados no estado. Dos 2,9 mil novos médicos, 55% não acertaram mais 60% da prova de múltipla escolha. Uma pneumonia em bebê não foi diagnosticada por 67%. A formação dos anestesistas é igualmente ruim?

Silva - Os programas de residência, na grande maioria, estão dissociados da realidade. Alguns desses programas foram criados há 35 anos e nunca passaram por uma revisão. A parte teórica do programa de formação de especialista em anestesiologia cabe em três brochurazinhas. São três cadernos fininhos. O obrigatório é só isso. A parte prática é a chamada supervisão médica. Estou lá fazendo o meu procedimento e o residente fica olhando. Isso não atende às necessidades atuais da medicina porque hoje lidamos com pacientes mais idosos e fazemos procedimentos mais complexos.

ÉPOCA - O ensino médico brasileiro precisa passar por uma completa revisão, a exemplo do que aconteceu em outros países?

Silva - Sim e o quanto antes. Na década de 40, os Estados Unidos chegaram a ter mais de 400 escolas médicas. Era um descalabro. Fizeram uma ampla revisão no programa de ensino e fecharam mais de 50% das escolas. De lá para cá, a formação médica passou por quatro reformulações profundas nos Estados Unidos. No Brasil, não houve nenhuma desde a fundação da Faculdade de Medicina da Bahia, a primeira do país, em 1808.

ÉPOCA - E a Fundação para a Segurança do Paciente? Qual será o papel dela?

Silva - Vamos levantar o problema no Brasil. Dar todas as informações, publicar os dados disponíveis. Quem se interna num hospital precisa saber, entre outras coisas, que erros de medicação são frequentes. Se um paciente passar sete dias internado, ele sofrerá, em média, de três a sete erros de medicação. Dose errada, horário errado, medicação que era para outra pessoa. Toda vez que alguém vier injetar alguma coisa na veia do paciente, ele precisa perguntar: “Que remédio é esse”, “Que dose é essa?”, “Tem certeza que é para aplicar na veia mesmo?” Quero colocar essas informações não apenas num site. Vou colocar em outdoors, dar visibilidade ao problema. Se o prefeito deixar, vou botar um letreiro na Avenida 23 de Maio para todo mundo ver. Vamos mostrar os casos de sucesso de hospitais brasileiros que conseguiram melhorar a segurança do paciente.

ÉPOCA - Com que dinheiro a Fundação será mantida?

Silva - Vamos receber doações de empresas e de pessoas físicas e garantir a transparência de todas as movimentações financeiras. Se gastarmos R$ 500 para comprar um computador, vamos ter nota fiscal. Tudo estará declarado no site para quem quiser checar. Vamos ver se assim conseguimos influenciar pessoas, melhorar as práticas nos hospitais e evitar tantas mortes. Se a sociedade civil se organizar, vamos conseguir.

 

DÚVIDAS SOBRE ANESTESIA? TEMOS AS RESPOSTAS

O que é anestesia?

É um conjunto de medicamentos que geram um efeito de sedação no seu corpo, permitindo a ausência de dor e de outras sensações durante uma cirurgia ou exame. É importante dizer que esse resultado é obtido por meio de drogas que possuem efeitos colaterais.

Quais são os tipos de anestesias? Existem basicamente três tipos:

• Geral: usada em cirurgias mais longas, deixam o paciente totalmente inconsciente

• Regional: atinge apenas a região a ser operada, como no caso da ráqui, em uma cesárea

• Sedação: apresenta diferentes níveis de intensidade. Desde ficar acordado e tranquilo até profundamente sonolento. É usada em um exame de endoscopia, por exemplo.

Quanto tempo dura uma anestesia?

O tempo de duração de uma anestesia depende da necessidade do trabalho do cirurgião. Ou seja, o tempo suficiente para que seja feito o procedimento, permitindo também que o paciente não sinta dor no pós-operatório.

Quem aplica a anestesia?

O responsável pela anestesia é o médico anestesista. Ele é quem aplica a anestesia e também controla a sua pressão arterial, o seu ritmo cardíaco, a sua temperatura e outras funções orgânicas durante e após a cirurgia. Além de cursar seis anos da Faculdade de Medicina, esse médico precisa estudar mais três anos de especialização.

Quem pode esclarecer minhas dúvidas sobre anestesia?

Quem pode tirar as suas dúvidas sobre o procedimento é o médico anestesista, que é o profissional capacitado para esclarecer qualquer questão que não esteja bem entendida. Existem muitos mitos, histórias a respeito de anestesia. Por isso, procure o médico anestesista e tenha a informação correta para sua própria segurança.

Devo informar se uso algum medicamento, antes de uma cirurgia?

Sim. Qualquer tipo de medicamento, mesmo os chamados naturais, fitoterápicos ou homeopáticos. Eles parecem inofensivos, mas possuem efeitos anticoagulantes e, em caso de cirurgias, há riscos de ocorrerem sangramentos prolongados.

Há riscos envolvidos com a anestesia?

Sim. De modo geral, os riscos estão concentrados em dois momentos da cirurgia. No início, na chamada fase de indução da anestesia e quando o paciente é acordado. A incidência de situações adversas nessas etapas pode ser maior em razão do quadro clínico e do histórico do paciente. Daí a importância de uma consulta pré-operatória com o anestesista.

Há diferença de risco entre um paciente e outro?

Crianças e idosos constituem os grupos mais suscetíveis a complicações durante a anestesia. Por isso, recomendamos que as cirurgias nesses dois casos sejam feitas apenas em caso de real necessidade.

Em que momento devo consultar um médico anestesista?

Quando seu médico indicar uma cirurgia com data marcada, você deve procurar um médico anestesista em seu hospital. Analisando seu prontuário médico, ele também, se necessário, irá indicar exames e avaliará se o seu corpo está em condições de ser submetido a um procedimento cirúrgico. Essa consulta é muito importante. A avaliação de suas condições de saúde pelo anestesista contribuiu para o aumento da segurança da cirurgia.

Fonte: Época

 

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