O sanitarista Mário Scheffer, da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP), apresentou tema de dissertação de mestrado sob o tema “
Os planos de saúde nos tribunais: uma análise das ações judiciais movidas por clientes de planos de saúde, relacionadas à negação de coberturas assistenciais no Estado de São Paulo”. O estudo consistiu na análise de 735 decisões judiciais relacionadas a exclusões de coberturas e negações de atendimento por parte dos planos de saúde, julgadas em segunda instância pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, entre janeiro de 1999 e dezembro de 2004.
Da análise realizada, verificou-se que em pelo menos 67 casos (9,2% dos julgados analisados), a cobertura de órteses e próteses pelos planos de saúde e de seguro saúde foram objeto de disputa judicial.
Segundo Maury Ângelo Bottesini e Mauro Conti Machado “
as próteses tem a finalidade de substituição do corpo humano destruídas ou danificadas parcialmente em razão de doenças, acidentes, ou excisadas em atos cirúrgicos curativos”. Já as órteses, segundo os mesmos autores, “
são aparelhos com a função complementar ou auxiliar de alguma função orgânica diagnosticada como deficitária”.
Entre os materiais objeto de embates entre consumidores e planos de saúde, mencionam-se os stents, marca-passos e cateteres. Também é comum a negativa de cobertura de próteses utilizadas em artroplastias, sendo as mais comuns as de joelho e quadril, em que se procede, por meio de procedimento cirúrgico, a troca ou substituição, total ou parcial, de articulações.
Via de regra, as empresas de planos e de seguro saúde sustentam que não tem o dever de cobrir tais materiais.
Basicamente, suas defesas são lastreadas em dois argumentos: (i) a sua função meramente estética e, portanto, de inexistência do dever de cobertura e (ii) a exclusão contratual no fornecimento de órteses e próteses.
Quanto aos procedimentos clínicos e cirúrgicos de natureza eminentemente estética, de fato não há previsão legal que imponha o dever de cobertura pelos planos de saúde. Ao contrário, a Lei 9.656/98 (que regula os planos de saúde), dispensa expressamente em seu artigo 10, inciso II, a cobertura de “
procedimentos clínicos ou cirúrgicos para fins estéticos, bem como órteses e próteses para o mesmo fim”.
Dessa forma, cirurgias plásticas de natureza exclusivamente estética, implantes de silicone, lipoaspirações etc, via de regra estão excluídas de cobertura.
Diz-se via de regra pois a noção de “
finalidade meramente estética” obviamente não se aplica, por exemplo, à prótese mamária destinada à reconstrução do órgão afetado pelo câncer, caso em que a cobertura certamente será justificável, de modo que este conceito pode tornar-se evidentemente subjetivo de acordo com o caso concreto.
Quanto ao argumento de expressa exclusão contratual de cobertura de órteses e próteses, o mesmo gerou acaloradas discussões e posicionamentos interessantes.
Com efeito, há diversos julgados em que as Cortes acolheram os argumentos de observância ao princípio do “
pacta sunt servanda”, acolhendo a tese de que, se há expressa exclusão contratual de cobertura, impossível ao Judiciário interferir em sentido contrário.
Nesse sentido:
“PLANO DE SAÚDE – Paciente portador de cardiopatia – cirurgia com implante de prótese para ponte de safena – Cláusula de exclusão de cobertura, de prévio conhecimento do autor – Afastamento da responsabilidade da entidade ré – Recurso improvido”. (Ap. nº 133.733-4, TJSP, 8ª Câmara de Direito Privado. Rel. Des. Carlos Alberto Hernandez. j. 03.04.2000).“Ordinária com pedido de tutela antecipada – Recurso contra decisão que determinou que a seguradora pagasse o nosocômio as despesas concernentes ao implante de prótese no segurado – Exclusão contratual quanto à implantação de prótese – Aplicação do princípio “pacta sunt servanda” – Recurso Provido” (AI nº 119.481-4, TJSP. 9ª Câmara de Direito Privado. Rel. Des. Silva Rico. j. 31.08.1999).Contudo, e não obstante a existência de tais precedentes, o posicionamento mais recente dos tribunais tem priorizado a noção da boa fé objetiva e da função social do contrato em detrimento do positivismo contratual.
Nesse sentido, assentou o E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, por ocasião do julgamento do Recurso de Apelação 628.131-4/1-00 que: “Importante a ressalva legal, de natureza cogente, no sentido de que somente se admite a exclusão de cobertura de próteses e órteses se não estiverem ligadas ao próprio ato cirúrgico, positivando o entendimento de nossos tribunais a respeito da matéria. Mesmo nos contratos anteriores à Lei. 9.656/98 a interpretação é a mesma, pois o ‘equilíbrio contratual, a função social do contrato e a boa-fé objetiva já serviam no direito comum de controle das cláusulas tidas por abusivas. Não há, em outros termos, direito adquirido a desequilíbrio contratual, nem à imposição de cláusulas iníquas‘ (AI 433.080.4/1-00. Quarta Câmara de Direito Privado. Rel. Francisco Loureiro. J. 02.02.2006)”.
Da mesma forma, por ocasião do recentíssimo julgamento do Recurso de Apelação nº 657.970-4/7-00, o E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo destacou que, para por fim à toda e qualquer discussão acerca da legitimidade ou não da exclusão de próteses e órteses, “
(…) a Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS editou a Resolução Normativa nº 167 de 9 de janeiro de 2008, cujo artigo 13, inciso VII, deixou expresso que o fornecimento de prótese é obrigatório sempre que sua implantação se faça através de cirurgia, qualquer que seja a natureza desta”.
Diante disso, seja em observância aos princípios da boa fé objetiva ou da função social do contrato, seja diante da expressa orientação ditada pela Resolução 167 da ANS, verifica-se que não tem prevalecido as teses que buscam justificar a exclusão de cobertura de órteses e próteses diretamente relacionadas a procedimentos cirúrgicos e que integrem e/ou viabilizem o tratamento a que se submetem os pacientes, sendo o posicionamento atual dos tribunais reiterado nesse sentido.
Artigo de Luciano Correia Bueno Brandão, advogado em São Paulo. Especialista em Direito Processual Civil. Cursou “Prática de Processo Civil” junto ao Instituto de Pesquisa em Teoria Geral do Direito e Biodireito. Membro da Associação dos Advogados de São Paulo (AASP). Membro efetivo da ”Comissão de Estudos sobre Planos de Saúde e Assistência Médica” da OAB, secção São Paulo. Autor de artigos e pareceres jurídicos.